NOTÍCIA E VATAPÁ: UMA METÁFORA INDIGESTA
Os argumentos defendidos pelo ministro Gilmar Mendes e endossados com entusiasmo pelo diretor de redação da revista Época, Hélio Gurovitz, que se proclama um jornalista diplomado, mas apóia a decisão do STF, giram em torno da inutilidade do diploma para o exercício profissional. Da mesma forma que qualquer um pode fritar um ovo ou praticar um ensopado na cozinha, qualquer um pode escrever para jornal, expressar suas opiniões, ter sua palavra impressa. A diferença está na qualificação profissional. Escrever como profissional, no dia-a-dia das redações, no ritmo frenético que se impõe à cobertura permanente dos fatos, não apenas narrando-os, mas construindo uma narrativa racional e organizada deles, é algo bem diferente da contribuição esporádica de especialistas em outras áreas do conhecimento, como defende o diretor de Época.
E por que é diferente? Porque o exercício da profissão de jornalista se baseia não apenas em técnicas que se aprendem na escola, mas em conhecimentos teóricos. Hoje, Jornalismo é uma ciência que se estuda e se pesquisa nas Escolas de Comunicação. Uma linha teórica predominante é a dos Estudos Culturais em Comunicação, adotada em Escolas de Jornalismo dos Estados Unidos, do Canadá, da Austrália, da Inglaterra, entre outros países. Segundo esta abordagem, o universo da informação midiática não é um simples relato ou reflexo do que acontece no espaço público. Ao contrário, é uma narrativa construída, a partir de uma lógica simbólica, ou seja, é um discurso.
Entenda-se discurso no sentido que Foucault lhe dá: uma construção lingüística e social da realidade, uma forma de conhecimento, um saber construído. Da mesma maneira que outros profissionais de áreas humanas ou exatas da academia elaboram um discurso sobre um determinado saber – pode-se dizer que há um discurso da Matemática que envolve as construções teóricas sobre a disciplina produzidas ao longo do tempo - da mesma forma há um discurso sobre o Jornalismo, que se erigiu a partir da pesquisa sobre a prática, e que permite formular teorias sobre o que é notícia.
E isto explica porque especialistas de outras áreas não podem ser jornalistas. Eles aplicarão sobre a notícia um olhar construído em outra área do saber, um olhar específico. Abordarão o acontecimento a partir de um discurso histórico, geográfico, sociológico, mas não saberão perceber nele os elementos que o transformam em notícia. A notícia reelabora informações de outras áreas de conhecimento e as coloca ao alcance do leitor ou telespectador de forma clara, racional, compreensível. E o jornalista é o profissional a quem cabe traduzir, de forma pública, o saber alheio.
Uma simples análise de textos jornalísticos mostra como os eventos são representados, como personagens e relações sociais são referidos, e como estas narrativas agendam o pensamento público. Ao contrário de um bom vatapá, que nos dá prazer ao ingeri-lo, as notícias em geral são mais indigestas, porque nos fazem pensar sobre a nossa realidade, nos interpelam como cidadãos, reproduzem versões dominantes de conflitos políticos e interferem no nosso cotidiano. Se o cozinheiro usar errado o azeite de dendê ele faz o vatapá desandar. Se o jornalista errar na narrativa sobre a realidade ele pode mudar o mundo, para o bem ou para o mal.
CÉLIA LADEIRA
Jornalista e professora de Jornalismo da UnB
quinta-feira, 25 de junho de 2009
Um pitaco mais acadêmico sobre o diploma de Jornalismo
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